E eu que dia desses li um livro de contos do Mestre Edgar Allan Poe?! Fiquei muito impressionado com a forma que ele descreve as cenas, é vívido como se eu estivesse num canto qualquer da cena vendo tudo aquilo acontecer.
Aí me aachando o bambambam da bala-chita resolvi botar minha já reduzida credibilidade a prova e escrever um texto inspirado na forma que ele escrevia, e o resultado eu comparilho com vocês aqui
(particularmente eu gostei! não que tenha ficado sequer o estilo de Poe, mas de qualquer forma eu gostei de verdade)
DON'T STOP BELIEVIN' – UM CONTO SOMBRIO INSPIRADO NA OBRA DE
EDGAR ALLAN POE
Um movimento incomum na avenida 7 de abril, viaturas de polícia chegavam e partiam a toda hora, também uma ambulância com suas luzes acesas e até mesmo um rabecão de mau agouro se aproximava dali.
O movimento de fardas subindo e descendo incessantemente a rua tirava toda a atenção de um senhor magro e calvo, óculos de lentes arredondadas sem os aros, com a camisa suja de sangue encostado, quase que displicentemente, em uma das tantas viaturas com suas mãos algemadas.
Os curiosos em volta diziam que fora ele mesmo que havia chamado a polícia e começado todo aquele rebuliço, logo após ter empurrado o carro que estaria parado no semáforo até próximo à calçada, liberando a via para não atrapalhar o trânsito.
Seu Aparecido, até as vésperas desse tumulto, era só mais um anônimo que saía de manhã com sua pasta vazia em direção ao seu trabalho. Só mais uma alma vagando miseravelmente de casa para o trabalho e do trabalho pra casa, sem incomodar ninguém com sua apagada presença.
Tudo o que restava dele era um eco silencioso de um passado quase distante, uma lembrança sombria da pessoa que ele costumava ser. Já havia sido casado. Havia tido um emprego melhor, um apartamento melhor. Ele até poderia sonhar que tivera uma vida realmente melhor.
Mas há bem poucos anos uma série de eventos desafortunados transformaram sua vida em um labirinto de arrependimentos e desespero. Seu Aparecido, era chefe de contabilidade de uma repartição pública da cidade; embora o serviço não fosse dos mais gratificantes em se realizar lhe proporcionava um certo senso de segurança.
Então, as coisas começaram a dar errado. Envolvido pelos colegas da repartição onde trabalhava um dia, ao final do expediente, foram ao Jóquei Clube. Dizia que não iria apostar, somente acompanhar. Mas não existe nada seguro e confiável num ambiente de jogatina e bebidas alcoólicas. Por inocência, talvez, foi seduzido a fazer uma aposta. “Vai lá Seu Aparecido! Que mal pode ter numa aposta? É só hoje mesmo...”
Foi o que precisava para abrir sua caixa de Pandora. Um deslize inocente rapidamente se transformou num vício insaciável. Seu Aparecido começou a deixar a repartição para ir ao Jóquei, muitas vezes nem sequer se dava ao trabalho de aparecer por lá. E assim cada vez mais ia mergulhando em dívidas, incapaz de resistir à tentação do jogo e tentando se agarrar à esperança fugaz de recuperar o que havia perdido.
À medida que suas dívidas e o vício aumentavam, a pressão sobre sua vida pessoal e profissional se tornava insuportável. Sua esposa, incapaz de suportar o fardo da vergonha que Aparecido havia transformado a vida deles, finalmente juntou suas coisas e o deixou. Ameaçado por agiotas, Seu Aparecido vendeu carro e apartamento para tentar manter seu resto de vida.
Desempregado e sem a esposa, ele acabou num apartamento minúsculo que mal podiam abrigar suas lembranças dolorosas e a crescente sensação de fracasso.
Um dia, sentado na escada à frente do conjunto habitacional que passou a ocupar, viu um dos vizinhos jogar um jornal numa das latas de lixo. Com uma mistura de esperança e apreensão, folheou os classificados em busca de qualquer oportunidade que pudesse trazer algum alívio a sua situação desesperadora. Naquele momento ele vivia apenas de pequenos bicos para juntar algum trocado e sobreviver.
Seu Aparecido deparou-se com um anúncio de emprego para uma vaga de contador em uma pequena empresa local, a poucas quadras de onde estava morando. Apesar das poucas informações fornecidas ele sabia que não podia se dar ao luxo de ser exigente com nada.
Bateu as mãos no bolso e encontrou algumas moedas, correu até o telefone público mais próximo e ligou no número indicado pelo anúncio e disse do interesse pela vaga anunciada. Foi chamado para uma entrevista na manhã seguinte. Naquela noite ele mal conseguiu dormir, mas estava determinado a agarrar essa oportunidade com todas as forças que ainda lhe restavam.
Minutos antes da hora marcada, Seu Aparecido estava sentado na recepção da empresa aguardando ser chamado. De onde estava, ouvia alguém berrando, insultando outra pessoa com todo tipo de xingamento imaginado. Ele não podia recuar, acreditava que, talvez, este emprego pudesse ser sua última chance de recomeçar e escapar do abismo infernal em que se encontrava.
Quando foi chamado, se viu de frente a um homem corpulento, quase sem pescoço, alto, barba e cabelos totalmente desmazelados que nem ao menos o deixou sentar e foi logo dizendo:
- Olha, eu não estou com tempo pra perder com mais um borra-botas que não aguentam o rojão do trabalho. Se você for um desses, pode ir dando fora daqui.
- Não senhor. Respondeu Seu Aparecido com a voz mais firme que conseguiu encontrar dentro dele. Mesmo a uma certa distância ele sentia o forte cheiro de cigarros vindo de seu entrevistador.
- Então o Oliveira vai te mostrar qual a sua mesa e o serviço. E em seguida gritou: “Ô Oliveira, leva esse aqui e mostra o que ele tem que fazer, e vamos torcer pra ele não arregar igual aos outros bunda mole que vieram aqui!”
- Obrigado pela oportunidade, Sr. Montenegro. Eu não vou te decepcionar. Respondeu meio titubeante, mas o novo empregador nem sequer lhe ergueu os olhos.
Assim, com um coração pesado e uma mistura de esperança e medo, Seu Aparecido começou nessa nova jornada, sem saber que o emprego que ele tanto almejava poderia se revelar um fardo ainda mais pesado do que ele imaginava.
Diariamente ele deixava seu apartamento e caminhava algumas quadras até chegar à empresa. Todas as vezes, ao chegar, ele pensava como seria possível aquele prédio se manter ainda de pé. Eram paredes mofadas, fios caindo pelos soquetes das lâmpadas, a maioria queimada, o forro de gesso estava todo rachado. Mas Seu Aparecido não tinha tempo de se ater a detalhes da condição do prédio, ele tinha que garantir que o Senhor Montenegro não o dispensaria.
Todos os dias, na sua baia apertada de trabalho, recebia pastas e gritos. Nada era bom o suficiente, nada prestava e ele precisava sempre refazer. As orientações de retrabalho viam com berros e tapas no tampo da mesa.
Algumas vezes o senhor Montenegro se dava ao trabalho de ir até onde ele estava só para ter o prazer de lhe jogar uma pasta em sua cara e ver seus óculos sem aro voarem longe.
Seu Aparecido tinha certeza que mais do que raiva por um trabalho aparentemente mal feito, o Sr. Montenegro sentia verdadeira excitação em maltratar aqueles que o rodeavam.
Diariamente Seu Aparecido voltava pra casa tentando se convencer que as coisas tinham que ser daquele jeito mesmo; que o Sr. Montenegro o estava ajudando a ser um profissional melhor nas necessidades da empresa dele.
Um dia, voltando pra casa, ele se lembrou de uma música e se agarrou a ela como um mantra que o salvaria de sua insignificância, era “Don't Stop Believin'” da banda americana Journey.
Mas os gritos e as pastas voando estavam ficando cada vez piores. Certo dia, quando o patrão lhe chamou para mais uma humilhação pública de sua já afamada incompetência, ele fechou os olhos e se imaginou pegando as inúmeras bugigangas da mesa do Sr. Montenegro e lhe acertando a cara, como ele havia feito tantas vezes com as pastas que lhe arremessava.
Suspirou e foi mais uma vez ser enxovalhado pela estupidez de seu patrão.
Seu Aparecido aparentemente não percebeu, mas de uns tempos pra cá cada vez que o patrão lhe berrava ele crispava os punhos e lábios antes de esboçar um pensamento que aquilo era o que ele precisava, era o que ele merecia. Ele então fechava os olhos e começava mentalmente a cantarolar o refrão: “Don't stop believin'. Hold on to that feelin'...”.
Mas ninguém tem sangue de barata o tempo todo! Um dia, durante uma sessão de ofensas gratuitas, o Senhor Montenegro reparou nos punhos cerrados do Seu Aparecido e falou:
- Que é?! Vai me bater com essa mãozinha fechada do senhor? Faça-me o favor! Um murro do senhor deve ser tão firme quanto um filhote de lesma cagando. Deixe de ser retardado e vá logo fazer o que estou mandando.
Seu Aparecido se assustou com o que havia acontecido, não pelas falas do chefe, isso ele já estava acostumado. Mas por deixar sua raiva transparecer mesmo que brevemente. Deste dia em diante ele se policiou ainda mais para que isso não tornasse a acontecer. Mas todos os dias e todas as horas ele passou a se vingar mentalmente do Sr. Montenegro.
Em seus devaneios mentais, Seu Aparecido, respondia às humilhações recebidas com violência, uma violência que talvez estivesse adormecida dentro dele! Ele, às vezes, ria e tentava imaginar se tivesse mesmo coragem de fazer pelo menos uma das muitas agressões imaginadas. Balançava negativamente a cabeça e voltava ao serviço.
Como se não bastassem as humilhações no serviço, o senhor Montenegro agora exigia que Seu Aparecido o acompanhasse até alguns clientes, segundo ele para segurar os documentos que não poderiam amassar. Cada viagem era um martírio ainda pior que no escritório. As agressões e os berros se intensificaram ainda mais, se é que era possível!
E com essa nova função de assecla particular do Senhor Montenegro, novas humilhações surgiram, e que mais divertia o patrão era deixar o Seu Aparecido no meio do caminho para voltar a pé ao destino, fosse escritório ou para casa.
Numa dessas voltas a pé o Seu Aparecido passou em frente a uma ferragista e por um instante observou as ferramentas. Nesse instante pareceu ter ouvido uma voz dentro de sua cabeça dizendo que seria fácil afiar mortalmente uma chave philips com uma lima de aço carbono.
Ele olhou em volta, talvez tentando ver se a ideia havia sido pescada aleatoriamente de alguma conversa próximo a ele na loja. Naquele instante a loja estava vazia. E o pensamento voltou. Repetindo-se várias vezes no decorrer dos dias.
Em suas caminhadas, ele agora buscava com o olhar onde estavam as lojas de ferramentas. Sempre que avistava uma, ele se aproximava e perguntava ao vendedor mais próximo os valores da lima de aço carbono e da chave philips de 150mm.
Às vezes ele fingia lutar contra o pensamento. Mas na verdade, estava cada vez mais claro na sua cabeça, o que deveria fazer para pôr fim àquela situação que ele não aguentava mais. A maioria das vezes nem se dava ao trabalho se fingir.
Numa de suas caminhadas de retorno para casa, ele finalmente decidiu comprar a lima de aço carbono e chave philips de 150mm. Ele poderia jurar que no momento que efetuou o pagamento ele ouviu “agora é hora do que precisa ser feito”, olhou em volta e estava sozinho.
Deste dia em diante sempre que chegava em casa ele se sentava no chão, ao lado de embalagens de comida industrializada e baratas, e lentamente ia afiando sua chave enquanto balbuciava trechos de seu mantra, “Strangers waitin' / Up and down the boulevard / Their shadows searchin' in the night / Streetlights, people / Livin' just to find emotion Hidin', somewhere in the night...”
Semanas de humilhação no serviço se passaram, e semanas repetindo religiosamente seu ritual em casa. A chave philips tinha finalmente se tornado uma arma. Várias vezes ele cortou a própria perna e barriga para garantir que ela estava como ele imaginara.
Ele precisava ter certeza tanto da sua finalidade quanto de sua disposição. As vozes em sua cabeça gritavam cada vez mais repetidamente “o que precisa ser feito”. Então numa madrugada quente ele saiu de seu apartamento e caminhou pelas ruas da região em que morava. Suas primeiras vítimas foram ratos. Assim que conseguia pisar em um, dos tantos que passavam por seus pés, Seu Aparecido o estocava.
Um sorriso de contentamento de canto de boca surgia quando ouvia o guinchar agoniante do animal sob seus pés sendo gratuitamente apunhalado. Isso se repetiu por algumas vezes, mas após cada maltrato aos pequenos roedores a vozes retumbavam ainda mais alto em sua cabeça: “O QUE PRECISA SER FEITO”.
Numa dessas andanças pela madrugada, parou a uma certa distância de um grupo de moradores de rua que discutiam ferozmente. Seu Aparecido acocorou-se nas sombras e aguardou o frenesi passar, sentia seu coração batendo tão forte no peito e o suor escorrendo pela testa que pensou que iria desmaiar.
No canto do olho ele viu um pedaço de pano sujo e o pegou. Após acalmada a situação e o indigente ter aparentemente adormecido, sutilmente se aproximou.
Observou por um instante o ressonar da boca aberta do lazarento, e quando se sentiu embriagado pelas vozes de sua cabeça ajoelhou-se enfiando o pano goela abaixo da vítima. Estocou seguidamente o peito com a mão direita, enquanto a esquerda garantia que o pano não saísse do lugar desejado para não haver sons desnecessários.
Após concluído o ato, levantou-se e retornou pra casa. Já era tarde, mais de 3 da manhã, e às 8 teria que estar no escritório. Em casa, antes de se deitar, lavou as mãos e a chave philips, que já não era mais uma chave.
Nos dias que se seguiram os jornais relataram o fato como um acerto de contas por potencial dívida de drogas. A polícia colaborava com a versão da mídia dizendo que o objeto perfurocortante utilizado havia sido encontrado a algumas quadras do local do crime.
Mas ninguém parecia se importar com a morte de mais um mendicante das ruas. Seu Aparecido passou a levar sua chave dentro de sua pasta todos os dias para o serviço.
Sentia-se satisfeito, as vozes de sua cabeça não.
Certa vez, acompanhando o Senhor Montenegro em um das visitas, o rádio do carro começou a tocar seu mantra, Don't Stop Believin próximo a um semáforo. Desinteressadamente, Seu Aparecido pede ao patrão para aumentar o som.
- O senhor gosta dessa música de viado?! Só podia ser mesmo...
Antes que o Senhor Montenegro terminasse a frase, Seu Aparecido estava com a chave afiada, estocando furiosamente o patrão. Cada segundo decrescido do temporizador do semáforo era uma furiosa apunhalada.
Peito, pescoço, barriga, e onde mais conseguiu acertar. O temporizador era longo o suficiente para que todas as vozes de sua cabeça se acalmassem com os diversos golpes desferidos contra seu algoz.
Quando ouviu os carros buzinando atrás deles, Seu Aparecido ligou calmamente o pisca alerta, desceu do veículo e o empurrou para próximo à calçada; onde convenientemente havia um telefone público.
Não era necessário moedas para ligar no serviço policial.
- Serviço Policial, boa tarde.
- Eu gostaria de relatar um crime.
- Pois não senhor. Quem está falando?
- É Aparecido.
- Qual crime deseja relatar, Seu Aparecido?
- Um assassinato. Acabei de matar meu patrão. Estou na Avenida 7 de Abril na altura da Praça das Águas.
Desligou o telefone e se sentou no meio fio, de onde podia observar, serenamente, o Senhor Montenegro sangrar com a chave ainda enfiada em seu pescoço.
O ambiente ao redor parecia congelar, como se o próprio tempo hesitasse diante da cena macabra que se desenrolava naquele cair da tarde. Seu Aparecido permanecia imóvel contemplando sua obra, enquanto os carros que antes buzinavam impacientes, agora diminuíam a velocidade, curiosos e chocados com o que testemunhavam.
Sentia o coração tão intenso quanto as tempestades tropicais que vinham no verão. O suor e sangue se misturavam em seu rosto e mãos. Seu corpo estava inundado de dopamina.
Enquanto esperava pela chegada das autoridades, uma mistura de sensações tumultuava sua mente. Por um lado, uma sensação de liberdade o envolvia, como se finalmente tivesse rompido as correntes que o aprisionavam naquela vida de humilhação e desespero. Por outro lado, uma sombra de remorso começava a se insinuar em sua consciência, fazendo-o questionar se seu ato estava correto, apesar de tudo que havia vivido.
Mas entre o alívio e a culpa, uma certeza crescia dentro de Seu Aparecido: aquele ato não era apenas um ato de violência, e sim um ato de redenção. Ele estava de fato livre de seu abismo de agonia, mesmo com o alto preço que pagara.
Quando as sirenes das viaturas policiais romperam o tumulto de sua mente, Seu Aparecido ergueu-se lentamente do meio-fio, encarando o horizonte com um olhar sereno e determinado. Ele estava ciente de que seu destino estava traçado, em breve seria entregue ao abraço frio da justiça humana.
No entanto, pela primeira vez em muito tempo, ele experimentou uma centelha de esperança brotar em seu peito, uma luzinha de esperança no labirinto de sua existência. Uma luzinha frágil e incerta, mas que brilhava com a promessa de um novo começo.
Ele havia finalmente encontrado o caminho de volta para si. E enquanto aguardava a chegada das autoridades, sob os giroflexes intermitentes das viaturas e o murmúrio dos muitos curiosos ao redor, ele murmurou para si seu mantra de salvação: "Don't stop believin', hold on to that feelin'..."
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