O Brasil fervilhava como um caldeirão esquecido no fogo, prestes a transbordar. Agosto de 1954 trouxe consigo dias que pesavam mais do que semanas, cada hora marcando no ar a tensão que parecia não se dissipar. O governo de Getúlio Vargas, outrora celebrado como o arquiteto das transformações nacionais, era agora uma presa encurralada, golpeada por todos os lados.
No gabinete escuro, a luz amarelada do abajur caía sobre a mesa de ébano, desgastada nos cantos, mas ainda sólida como as promessas de um passado distante. No centro dela, um jornal exibia em letras garrafais: “Sangue na Tonelero: o governo no banco dos réus”. Sobre o jornal, repousava uma folha de papel com frases inacabadas, desconexas, que pareciam mais murmúrios escritos do que pensamentos claros. Traços incertos, riscados em ângulos curtos, como se a mão que os desenhara estivesse cansada demais.
Ao lado, uma caneta. A mesma que Vargas segurou com firmeza em 1934 ao assinar a Constituição que prometera um novo Brasil. O mesmo metal frio que, agora, parecia carregar o peso de duas eras: a da ascensão e a da queda. Vargas estendeu os dedos para tocá-la. Os olhos, fundos, demoraram-se no brilho opaco do objeto, onde o reflexo do abajur parecia tremular como uma chama prestes a se apagar.
Com os olhos fixos, como se tentasse encontrar ali uma resposta. A caneta que antes refletia sua força, agora mostrava apenas a fragilidade do homem que a olhava. Vargas sentiu um calafrio, não causado pela brisa que entrava pela janela entreaberta, mas por algo mais profundo, mais sombrio. Suspirou, longo e pesado, como se o ar que saía de seus pulmões carregasse o fardo de décadas, promessas quebradas e um país à beira do abismo.
No corredor ao lado, passos abafados e suspiros entrecortados. Na sala, o silêncio era quebrado apenas pelo tamborilar incessante da chuva contra a janela. Uma gota insistente descia pela moldura de madeira e caía sobre o chão, criando pequenos círculos no verniz, tão lentos quanto a queda do próprio homem.
Os olhares. Lembrava-se dos olhares. Os aliados que ainda passavam pelo palácio o faziam com olhos vazios, evitando encarar o presidente por mais que alguns segundos. Eram olhares de resignação, de quem já não esperava vitória, apenas o desfecho inevitável. Vargas percebia isso. Não precisava de palavras. Era um silêncio cúmplice, cortante.
Apoiou os cotovelos na mesa e encarou a folha à sua frente novamente. As palavras rabiscadas pareciam zombar de sua fraqueza, expondo a desordem de uma mente outrora estratégica. Passou a mão pelo rosto, agora enrugado, e esfregou os olhos. O cansaço não era físico. Era a exaustão de quem carregou o ânimo de um país inteiro por tempo demais.
Uma rajada de vento invadiu o gabinete, balançando as cortinas escuras. Vargas levantou-se lentamente, os sapatos ecoando no piso enquanto caminhava até a janela. Ficou ali por um instante, encarando a escuridão da noite e a chuva que se desfazia em filetes no vidro. Ali fora, o país seguia fervilhando. Ali dentro, o silêncio esmagador parecia um aviso.
De volta à mesa, suas mãos se estenderam novamente para a caneta, como se ela fosse a única coisa que ainda pudesse segurar. Seu desconforto agora parecia carregar sua história e seu futuro. Uma caneta para construir; uma caneta para findar. O círculo estava quase fechado.
No fundo de sua mente, as imagens da Revolução de 1930 surgem como uma chama débil, mas quente. O povo nas ruas, a multidão aplaudindo a sua vitória. A sensação de poder, de ter sido escolhido. Vargas revia aquele momento com um certo distanciamento, como quem olha para uma lembrança estranha e distante, mas ao mesmo tempo inconfundível. A madrugada em que ele ascendeu à liderança não foi uma vitória limpa, nem gloriosa. Foi marcada pelo tumulto, pela frustração de uma nação submersa em miséria, e ele se colocou à frente com a promessa de redenção.
Quando o Estado Novo se concretizou, sentiu, pela primeira vez, o poder em sua forma mais absoluta, mas também o incômodo da solidão que ele causava. Aqueles anos de autoritarismo, a censura, o exílio de opositores... Ele via a si mesmo como o homem forte, o estadista que precisava garantir a estabilidade a qualquer custo. E agora, sentado naquela mesa, ele se questionava sobre os sacrifícios de sua própria alma. “Quantos corações não perdi ao meu redor?”, pensava. Ele se via com o dedo apertando a caneta para assinar atos que calavam a oposição, à vida livre.
As memórias das massas o invadiam, trazendo à tona um Brasil que o via como um salvador, o 'pai dos pobres'. A promulgação da CLT foi como o nascimento de uma utopia. O orgulho, a sensação de dever cumprido. Mas isso havia sido há muito tempo. Agora, no peso do presente, ele sentia-se refém das promessas feitas a um Brasil que já não existia. “Por que os mesmos que aplaudiam não estão mais ao meu lado?”, ele questionava enquanto fixava o olhar na folha diante dele, ainda com as frases interrompidas e desconexas.
Sua eleição democrática trouxe a ironia do destino. O velho líder, com sua experiência, agora presidia em um Brasil diferente, mais exigente, mais cínico. Seus aliados estavam mais distantes, e a política agora se tornava um jogo mais sujo. Não sentia o mesmo vigor de antes. Sentia-se apenas um homem que tentava administrar uma máquina já corroída por anos de desconfiança e desgastes. Se via fraco, seu prestígio político diluído. O Brasil, agora, parecia mais um campo de batalha para os inimigos que o cercavam. “Triunfo ou fracasso?”, se perguntava, em um sussurro para si mesmo.
No Congresso, os inimigos eram muitos, e não escondiam a língua. Lacerda, ponta de lança de uma oposição colérica, gritava nas tribunas. Uma voz carregada de veneno. Não precisavam mais disfarces. Vargas já não tinha aliados. Os poucos que ainda restavam evitavam seu olhar, se distanciavam ao menor sinal de fraqueza. O povo que o havia aplaudido, agora acusava. Chamavam-no de ditador, de corrupto, de homem que governava nas sombras de conchavos e interesses mesquinhos.
A imprensa, voraz, não falava mais ao povo. Mastigava pedaços do governo como hienas que devoram carcaças abandonadas pelos leões. Os escândalos se multiplicavam, como se alimentassem da carne podre da administração. Expondo um homem perdido em suas mentiras. E Vargas, sentado ali, com os olhos fixos na folha à sua frente, não podia mais negar. A ferida já estava aberta. A chuva batia contra a janela, quase abafando o som da agonia que se espalhava pelas ruas e pelas redações.
A dose de whisky em cima da mesa não parecia ajudar. Vargas levou o copo até os lábios com a esperança de que a bebida pudesse dar-lhe algum alívio. O líquido queimava a garganta, mas não era o suficiente. A sensação que procurava estava distante, como um fantasma que nunca chegaria. O malte não lavava a amargura, não trazia a anestesia para a alma já estilhaçada. Deixava o gosto do vazio ainda mais palpável.
A notícia do atentado da Rua Tonelero se espalhou como fogo em palha seca, mas Vargas sabia que a verdade pouco importava. O disparo de Gregório Fortunato, chefe de segurança e motorista, não foi um ato de traição. Vargas reconhecia ali, de maneira angustiante, que era um ato de lealdade desesperada. Fortunato, ao dar o tiro, não queria matar, mas proteger — ou, ao menos, parecer estar protegendo. Ele, que havia servido ao presidente com devoção, transformava-se no estopim final da explosão do governo. E, naquele momento, sentado diante da folha incompleta, com as palavras presas na garganta, ele se perguntava: até onde ele próprio havia sido traidor, ao aceitar o veneno dos conchavos políticos? A imprensa já havia feito seu veredito, e agora o presidente não passava de um criminoso, o homem responsável por uma tentativa de assassinato.
Os olhos de Vargas estavam perdidos em um abismo silencioso, onde as vozes que o chamavam de ditador se confundiam com aquelas que o chamavam de fracassado, de um homem que já não tinha forças para se levantar do chão. Ele sentia a pressão da inevitabilidade de seu fim, como se cada movimento que fizesse estivesse empurrando-o cada vez mais a frente. Não era mais o estadista que havia assinado a Constituição de 1934 com mãos firmes. Não era mais o líder que sentia o peso de um Brasil nos ombros. Era um homem desmoronando, pedaço por pedaço.
Vargas, com a caneta ainda em mãos, olhou para a folha diante de si. A carga das palavras que escrevera nas últimas horas parecia incomparável à culpa de sua própria existência. O cheiro de tinta misturado com whisky, que repousava em uma dose meio cheia sobre a mesa, se misturava à sensação de morte iminente que ele sentia em cada centímetro daquele gabinete. A caneta que ele usara para assinar a Constituição, para criar a Petrobrás, a Eletrobrás, a legislação trabalhista, agora parecia apenas uma lembrança distorcida da confiança que um dia inspirara.
Vargas olhou novamente para a folha, tentando processar as palavras que havia escrito. Sentia a mente enfraquecida, desgastada pela pressão. As palavras estavam lá, mas não era ele quem as escrevia. Não era mais ele quem decidia o que dizer. Estava cansado, cansado de tudo. A luta, a dor, a perda. Uma dor que se multiplicava, uma dor que não passava. Ele pensou que poderia escrever mais, dizer mais. Mas o que mais havia para dizer? O que restava em seu peito, se não um vazio imenso e o fardo das palavras que já não sabiam mais como se conectar? "Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se...", leu para si mesmo, quase sussurrando. O peso das palavras pareciam o afastar da realidade. "Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam."
A ironia lhe atingiu como um golpe. As forças que ele combateu com ardor, ao longo de décadas de governo, agora o tinham encurralado. Naquele momento, ele, o homem que tantas vezes havia erguido sua voz em nome do povo, sentia-se mais silenciado do que nunca.
"Escolho este meio de estar sempre convosco..." cada palavra soava como uma última tentativa de imortalizar sua presença. A sensação de desamparo o envolvia, mas havia ali também uma resistência obstinada, como se sua voz finalmente estivesse se libertando da garganta apertada que o silenciava.
Levantou o olhar da carta, fixando-se na janela, que continuava a ser martelada pela chuva. 'Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma', seria isso verdade? Seu sangue, sua dor, seu sacrifício... Ele realmente acreditava que isso manteria o povo unido? Ou ele estava apenas se enganando? O que restaria de suas palavras depois de sua morte? Não sabia mais se o que ele oferecia era realmente um sacrifício ou apenas um eco de um homem que já não sabia mais como viver.
Aquela carta não era só uma despedida. Era a resposta silenciosa a todos que o acusavam. "Ao ódio respondo com o perdão", suas palavras reverberavam dentro dele. Seu texto não trazia vingança. Trazia uma última tentativa de preservar sua história. O sacrifício de seu corpo e sua alma pela luta de um povo que, ele sabia, não poderia mais ser escravo de ninguém. Seu próprio sangue oferecido como "holocausto".
Vargas, o homem enfraquecido, desejava que suas palavras fossem a última chama que queimaria na consciência dos brasileiros. Que, seu nome seria a bandeira da resistência. Mas, ao terminar de ler, não havia alívio, nem redenção. Apenas a sensação de que suas palavras se tornariam mais um grito perdido, na mesma dimensão em que os olhares dos que o abandonaram o chamavam de fracassado. E no entanto, ele ainda se via como o guardião de uma verdade esquecida, condenado a se sacrificar, em nome de uma ideia que já não mais existia.
Não pensava mais em glórias, em resistir, ou em sacrifícios. Pensava só em terminar com aquilo tudo, de uma vez. O silêncio do gabinete parecia ainda mais espesso. A chuva lá fora continuava sua batida monótona contra a janela. Ele levantou-se da cadeira, a dor nas costas, pela primeira vez, era mais forte que o cansaço mental. Os passos eram lentos, pesados. O rosto, cansado, sem expressão. Como se a decisão já tivesse sido tomada muito antes de ele entrar em seu gabinete.
Pegou a pistola. O metal estava frio, como o vazio que tomava conta dele. Sentiu a textura da empunhadura, a ponta do dedo sobre o gatilho. Não olhou para o espelho, nem para a janela. Olhou só para o centro daquilo tudo. E, sem mais palavras, sem mais nada, puxou o gatilho.
O som do disparo soou abafado, como se o mundo tivesse finalmente se calado em torno dele. O corpo caiu. O infortúnio da vida, dos anos, das derrotas, se dissolveu naquilo. O resto foi silêncio, e a chuva lá fora.
Vargas não existia mais. E o Brasil, com seus sonhos e misérias, continuava a existir.
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