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Imagem de Juda por Pixabay |
Quero rir até passar mal (sem um fiscal do riso gritando ‘inaceitável’ no meu cangote)
Lembro de uma época — entre o fim da Guerra Fria e o início da era do coach quântico — em que a gente podia rir de absolutamente tudo. Não porque éramos monstros insensíveis, mas porque sabíamos que rir era o jeito mais barato (e socialmente aceitável) de dizer: “isso aqui tá uma merda, mas pelo menos é engraçado”.
Hoje, o riso vem com manual de instruções, aviso de gatilho e, em muitos casos, boletim de ocorrência. Cada piada precisa passar por um comitê ético, uma curadoria, verificação junto ao compliance e um selo ISO de responsabilidade afetiva. O riso espontâneo virou uma atividade de alto risco, tipo saltar sem paraquedas.
Alice Viveiros de Castro, pesquisadora do circo e devota do bom senso com humor, diz que existe uma diferença crucial entre rir de e rir com. E solta a bomba: “as melhores piadas sobre bixas eu ouvi dos meus amigos bixas.” Não é escárnio. É alívio. É laço. É código interno. É coisa que não cabe em políticas de RH.
Aí você lembra de TV Macho — um antro de testosterona descontrolada, esquetes escatológicas e humor que cheirava a cigarro, cerveja e toxicidade. Ninguém se salvava. Depois ligava na TV Colosso, com cachorros apresentando programa de auditório num delírio coletivo que hoje seria cancelado por crueldade com fantoches. E encerrava com Casseta & Planeta tirando sarro de tudo que respirava e usava CPF.
Se fosse um pouco mais cult, metia um Monty Python ali no meio. Uma seita britânica do absurdo, com senhores de meia-idade travestidos zombando da religião, da monarquia, da mãe e da lógica. Hoje, seriam acusados de 47 tipos de opressão simultâneas antes mesmo do punchline.
E, claro, Chico Anysio. O homem que interpretou mais brasileiros do que o próprio IBGE consegue mapear. Hoje ele seria acusado de apropriação cultural, regionalismo opressivo e falar com voz engraçada sem autorização.
Se ainda tivesse fôlego, dava tempo de pegar um rerun d’Os Trapalhões — a tropa de elite do humor brasileiro. Quatro caras rindo da própria caricatura: o malandro, o certinho, o bêbado e o infantilizado. Hoje, só a abertura do programa já geraria cinco threads no X e uma intervenção do Ministério Público. Mussum, inclusive, é um caso à parte: fazia mais pela cultura preta com cachaça na mão do que muito influenciador de turbante e frase de efeito.
E se puxar mais fundo na gaveta do escracho nacional, lá estão Costinha, com sua indecência teatral digna de pastel de rodoviária, e Ary Toledo, que fazia piada com política e pinto com a mesma tranquilidade. Ambos seriam defenestrados hoje em três cliques — e talvez, com alguma razão. Mas eram o retrato de um Brasil onde o riso era o filtro, não o alvo.
O humor, no seu estado mais puro, é como o bobo da corte: aquele ser desajustado, esquisito, autorizado a dizer o que ninguém mais podia. Não porque era especial — mas porque era necessário. Hoje o bobo da corte virou influenciador wellness ou foi reeducado por um curso de "humor consciente e empático".
Não estou pedindo o retorno das piadas escrotas de tiozão do pavê. Mas talvez a gente precise recuperar a permissão de rir com o mundo e não apenas dele. De rir dos absurdos que vivemos. De rir do que é trágico, feio, grotesco — porque é isso que faz a vida doer menos e nos deixa, por alguns segundos, acima da catástrofe.
O problema não é a piada. É que a gente desaprendeu a rir junto. E sem esse riso coletivo, tudo parece mais pesado. Mais solitário. Mais insuportável.
Então, sim: às vezes, rir até passar mal é o ato mais revolucionário que nos resta. E se te ofenderem no caminho... parabéns, você ainda sente alguma coisa.
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